22 outubro 2011

E ser aquilo, era o que eu sempre quis

Eu sempre quis ser as coisas para entender como as coisas se sentem diante de algumas coisas. É como se não fosse suficiente perceber o mundo pelas lentes dos meus olhos, porque existem experiências que só se tornam reais, quando além de mirar, a gente consegue estar dentro daquilo. E ser aquilo era o que eu sempre quis. Não bastava enxergar, eu queria mesmo sentir na pele o que as coisas, não sendo eu, sentiam.
Quando fui crescendo, e ainda estou crescendo, ficava questionando a lógica do universo. Ficava pensando o porquê que certas coisas tinham certos nomes e outras coisas tinham outros nomes. Por que o macarrão se chama macarrão e não se chama chave, carro, bolsa? E por que a chave não se chama macarrão ou carro se chama chave? As coisas existem mesmo ou as pessoas as inventam? Essas eram o tipo de pergunta que eu fazia aos adultos, e hoje adulto, ainda faço, só que a mim mesmo. E não encontro respostas, claro. A não ser uma imensa vontade de continuar meus questionamentos pseudo-psicóticos.
Mas as coisas eu sempre quis ser. Talvez por curiosidade, talvez por empatia, talvez para me sentir como o personagem do livro do Ítalo Calvino: Palomar. Livro que eu só conheci quando adulto, o que é uma pena, porque toda criança devia ao nascer ganhar esse livro de presente, mesmo que ainda não soubesse ler. Pelo menos para dormir com ele toda a noite em sua cama. Em linhas gerais, posso dizer que o Sr. Palomar tinha o nome de um famoso observatório astronômico, que durante muito tempo ostentou o maior telescópio do mundo. Porém, apesar de ter o mesmo nome do observatório, os olhos do Sr. Palomar funcionavam quase sempre como se fosse um telescópio ao contrário, voltado não para amplidão do espaço, mas para as coisas próximas do cotidiano. É como se ele nos dissesse que as grandes questões do mundo e da existência também estão presentes em cada objeto que observamos, até as coisas mais singelas.
Mas voltemos agora a falar sobre as coisas... Por exemplo, eu sempre quis ser uma porta. É isso mesmo, uma porta. De preferência uma porta de madeira, pois tenho dificuldade de aderir novas tecnologias. Eu sempre quis entender como as portas aceitam serem tocadas por tantas vezes e muitas vezes com tanta força. Fechadas, abertas, arreganhadas. E ainda por cima estarem sempre metade dentro de casa e metade fora de casa. A porta é talvez o que se chamam hoje em dia de bi? Ela é interior e também exterior. É dentro e é fora. É um lado e é outro. E não sei se é sorte ou azar das portas que tem um olho no meio de seu corpo. Bom, dizem até que esse tal olho é mágico.  Não sei... Acho que furar uma porta é quase que deixar uma ferida narcísica na sua essência. Porque se a porta nasceu mesmo pra ser porta, qual o sentido de no meio dela ter uma brecha pra se olhar?  
Também sempre quis ser balde. Um simples balde, de preferência aqueles baldes pretos que parecem suportar mais peso. Penso se os baldes, que foram feitos para serem baldes, sentem-se solitário por não estarem acumulando ou sendo depósito de água. Será que os baldes gostam de ser carregados pra cima e pra baixo, levando sacolejo. E o que será que os baldes sentem quando neles é colocado roupas sujas, ou até mesmo areia? Eu não acho que os baldes foram feitos para carregarem areia, não é sua essência... Acho mesmo que os que fazem isso com os baldes, deviam perceber que eles não foram feitos pra isso.  É como querer que um chinês ao nascer já saiba sambar ou deixa ou corpo leve ao som de um maracatu.
Eu sempre quis ser um livro... Ah, não posso morrer sem ter sido um livro. Sei que serei lido, amassado, rasgado, riscado, recomendado, citado, encadernado, xerocado, trocado, vendido, amado... Um bom livro de romance ou talvez de poesia, quem sabe um livro com a história completa da astrologia ou dos tempos da caverna? Eu sempre quis saber se os livros preferem quando estão usados e passam de mão em mão ou se preferem passar anos em uma prateleira, esperando seu dono. Não, acho essa espera injusta. Por isso queria ser um livro,  pra saber o que eles sentem, porque eu, não sendo eles, gosto de livros rodados, confesso.  Livros que já passaram por tantas mãos que já perdeu as contas, mas que quando chegam a mim, tornam-se pra sempre meu, pois já chegam amadurecidos pelo tempo.
Ah, eu também queria ser um peixe. E é claro que se eu fosse um peixe eu seria um peixe azul. Alguém aqui duvida? Porque tem dias em que meu corpo sente saudades de uma encarnação em que fui peixe, um peixe que vivia na água e no ócio. Mas como não me lembro da minha outra encarnação, preciso vivenciar a experiência outra vez, mas tinha que ser peixe de água salgada. Isso eu faria questão. Já imaginou, habitar o mais profundo do oceano sem se afogar ou precisar de equipamentos para respirar? Peixes são lindos, e deviam saber disso. Ao contrário dos vegetarianos, eu não gosto de quem vive comendo peixe e se acha saudável. Acho uma maldade. Mas eu também sou mal, porque apesar de amar os peixes eu também os como, e o que é pior, eu como feliz. Na verdade, quando criança eu nunca gostei de peixe. Tinha uma certa resistência por aquele tipo de carne estranha. Depois de grande, minha mãe dizia que peixe era o tipo de carne mais saudável e talvez por isso mais caro. Os homens, ela dizia, capitalizaram todos os melhores prazeres, meu filho.
Além disso, eu sempre quis ser música, cama, árvore, cadeira, telhado, pipa, girassol, papel, mar, televisão, porta CDs, grampeador, caixa, pássaro, sol, biblioteca, caneta, terra molhada, prato, jardim, pia, roupa, quintal, lustre, chuveiro, dança, toalha, banco de praça, parede, festa, carro de som, mosquiteiro, ventilador, lâmpada, rede, pé de ipê, sítio, festa, foguete, isqueiro, remédio, radiola, gelo, sofá,  câmera Polaroid, botão, motel, tecido, tomada, travesseiro, incenso, torneira, fruta, cola, disco, chão, quadro, sandália de couro, coreto, avenida, relógio, água, nuvem, praia deserta, tempo...
Eu sempre quis ser muitas coisas pra saber o que era ser essas coisas. Eu queria talvez ser eu mesmo pra saber o que eu sentia.  Eu queria só sentir o que se sente. Eu queria ser eu.
Mazes

2 comentários:

Magda Albuquerque disse...

Eu queria ser você, e escolher tão sabiamente as palavras e escrever tão perfeitamente.

Um beijo.

MisterEd disse...

Muito bom Mazes... Há tempos que eu não leio algo seu mas dessa vez me senti atraido pelo título. Aida bem. Lindo! Beijo.