16 setembro 2010

'Mazes fazendo faculdade e eu fazendo menino'


Ela queria ser atriz. Queria ser não, na verdade ela era atriz. Éramos todos atores. Houve um tempo e de certa forma não faz tanto tempo assim, em que o teatro era minha vida. Crescemos brincando nas coxias, entre os figurinos, montando cenários, organizando as cadeiras da platéia, varrendo o teatro... Ensaiávamos a tarde, a noite e até de madrugada se preciso fosse. Enquanto os de 13, 14 e 15 anos saiam com suas melhores roupas da moda para enfeitar a cidade, nós estávamos no palco ensaiando ou apresentando nossos melhores e piores personagens.  
 Nossa, como o tempo passa rápido! Esses são os desenhos que o destino vai fazendo na vida da gente. Adolescência, brincadeiras, sonhos, profissão... Nossa negritude, rsrs. Engraçado lembrar das brincadeiras e dos comentários no camarim:
- Mas vê só. Um neguinho e uma neguinha querendo ser atores. (Alguém sempre dizia e ambos riamos porque tudo era tão engraçado).
Dois querendo ser aplaudidos no tablado e nos palcos da vida e numa quarta-feira de setembro ela me encontra e me diz :
-É, Mazes fazendo faculdade e Bia fazendo menino.
Grávida de seis meses, pelo menos foi o que ela me disse. Eu de pasta da mão, todo na beca e na imparcialidade impossível de ser alcançada e ela alisando sua barriga. Eu com 21 anos no 4º período da faculdade e Bia com 18 anos grávida de uma menina. E quem poderia prever?
Ela queria ser atriz famosa e lutava pra realizar isso. Tanta leitura branca, laboratórios, aquecer o corpo, a voz... Tentando fazer com que a velhinha surda que sempre fica lá na última cadeira da última fila do teatro escutasse o que se diz no palco. Na verdade às vezes acho que a vida é que é surda e parece não escutar nossos sonhos e desejos. Ou talvez nossas escolhas é que são cegas e nos leva por caminhos tão distantes do que costumávamos sonhar.
Ela queria ser atriz e declamava Shakespeare tão bem que era impossível olhar para o lado quando ela estava atuando:
‘Ai de mim, maldito serão os dias faltando sua luz. Nesses dias o sol em tristeza não mostrará sua face, mas com as asas do amor transporei o muro. Limites de pedras não serão empecilhos. Colocarei minha sorte a seus pés e o seguirei por onde for...’
Eu também queria ser ator, mas no fundo, bem lá no fundo, eu sempre soube que atuar não era meu dom. Acho que eu viva no teatro pra ser feliz, pra brincar, pra poder pegar livros emprestados na biblioteca, pra poder ouvir música alta nos caixas amplificados do teatro, pra poder respirar aquele cheiro gostoso de arte, de juventude. Mas ela não, ela sempre teve talento pra coisa e sabia disso. Todo mundo sabia. Até troféus ela ganhou. Eu no máximo, fui indicado algumas vezes... Mas tudo bem, a psicologia já me ganhou. Nem ligo mais pra isso, já liguei um dia.
Daqui há no máximo três meses o bebê de Bia nascerá e qual serão os sonhos dessa guria? Eu olhando aquela barriga, sem sabe muito bem o que dizer, ensaiei algumas palavras de esperança:
- Ainda somos tão jovens, Bia. Olha só pra você! Olha pra essa tua cor de pela linda. Olha esse teu olhar de menina. Você ainda tem tempo de conquistar o mundo.
Acho que ela realmente não tinha muito a acrescentar, mas olhou pra mim, sorriu um riso doce e disse sem querer dizer:
- Não, eu não tenho tempo, Mazes. Eu tenho é uma criança em casa me esperando e mais essa menina na barriga pra cuidar. Você sim tem todo tempo do mundo, meu amigo!
Depois disso Bia foi embora desatenta ao transito da avenida. Me deixou praticamente falando sozinho e seguiu em linha reta... E eu fiquei estático, quase no meio da rua olhando ela caminhar enquanto o vento brincava de fazer festa em meu cabelo. Os carros passavam por mim e de alguma forma absurda, não me atingiam.
- É, eu vivia no teatro, porque eu gostava de viver.
Mazes
Depois ela cantou pra mim: Beatriz - Monica Salmaso & Pau Brasil

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